Nelson Rodrigues. Que saudades que eu tinha de ti. De tuas palavras saídas de páginas de livros de coletâneas, de livros contendo teu teatro necessário. E como eu tinha ainda mais saudades de ouvir tuas palavras projetadas da boca dos teus fãs mais fiéis: os atores. Os seres dionisíacos, que em seu ofício de auto-sacrifício mediúnico, dão vida e víscera às tuas idéias.
Nelson Rodrigues. Não interessa que já te foste. Não interessa que escreveste há décadas tuas crônicas. Teu brilhantismo é atual como nunca. E apesar de não compartilharmos o mesmo tempo, me sinto mesmo assim próxima de ti.
Ontem fui ver "Bravíssimo", espetáculo onde Ricardo Guilherme, um cearense genial que eu não conhecia, brinca, compila e reorganiza várias de tuas crônicas num resultado cativante e contundente.
Apesar do cenário simples, apenas uma mesa de vidro, cadeira de escritório e uma pilha de papéis almaço - que Ricardo, um a um, rasga, joga, embola, amassa e mastiga - eu não consegui desgrudar olhos e ouvidos por um segundo de tudo que foi vertido naquele palco.
E me identifiquei, ora com a vizinha gorda, de mãos fofas de gorda e cheia de varizes, que é insolente e acredita -como deve acreditar todo o brasileiro - que se os fatos são contra ela, pior para os fatos; ora com a voz educada e o discurso cheio de
self-hatred da diáfana grã-fina das narinas de cadáver.
"Há quinhentos anos não fazemos outra coisa senão perder. Afinal de contas, subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos e séculos. Subdesenvolvimento é a derrota cotidiana, a humilhação de cada dia e de cada hora. E a grã-fina das narinas de cadáver ainda vem dizer ao pobre diabo brasileiro: 'vá perdendo, continue perdendo, aprenda a perder com serenidade e equilíbrio'. "
Tuas palavras Nélson, redesenhadas e ditas por Ricardo ontem, me deixaram envergonhada das vezes em que eu também falei mal dos brasileiros, duvidando da nossa glória, e acreditando idiotamente na superioridade infinita de um outro continente e um outro povo, só por terem uma história ocidental mais antiga que a nossa.
É justamente pelo nosso jeito ímpar de ser, que eu voltei pra cá. Para voltar a ser brasileira, no Brasil,
essa terra meio
faery, meio reino elemental. E sim, concordo com a idéia de que o brasileiro é um fauno saído de uma tapeçaria. Essa terra parece pertencer a uma realidade paralela, uma outra dimensão, para a qual eu precisava retornar, sob pena de perder para sempre minha força vital que dela emana.
Me fez muito bem ver "Bravíssimo". E me fez muito bem ver o trabalho do Ricardo Guilherme, me fez lembrar porque eu amo o Teatro do jeito que eu amo.
Enfim, recomendo. Muito. Para quem estiver em São Paulo, "Bravíssimo" fica em cartaz só até esse domingo, dia 11. E tem entrada franca.
Espetáculo Bravíssimo
Datas: de 01 a 11 de julho de 2010
Horário: de quinta-feira a domingo, às 19h
Local: CAIXA Cultural São Paulo - Praça da Sé, 111 – Grande Salão
Entrada: franca (os ingressos poderão ser retirados na bilheteria com uma hora de antecedência)
Capacidade: 100 lugares
Duração: 60 min
Classificação etária: 14 anos
Patrocínio: Caixa Econômica Federal